Textos

Instantes

Hoje eu acordei cedo como acordo todos os dias. Não que não tivesse cansaço ou sono, eu tinha, tenho, mas para além do cansaço, meu senso de obrigação me faz acordar cedo todos os dias. Já me acostumei, gosto de ouvir os silêncios da casa, o estalar da madeiras das portas, caibros e colunas, o barulho dos pardais e andorinhas que anunciam o dia chegando, o som das patas apressadas dos cachorros a correr pela rua e o latido de Fred e Pitty defendendo seu território.
Há dias em que acordo e fico horas deitado, o quarto ainda na penumbra, ouvindo os pequenos barulhos da rua, há vezes, a depender de meu estado de espírito que ponho uma musica, ligo a TV, mas invariavelmente eu gosto de ouvir o dia amanhecer, e me entrego a preguiça boa de ver, ouvir e cheirar o dia começando, desde o som remanescente de um grilo que ainda produz seu som estridente, até o barulho dos carros e motos que felizmente são poucos nesta rua.
Agora, mais recentemente, há dias em que aproveito para aguar as plantas. Estou viciando em ver elas crescerem viçosas e coloridas.
Hoje acordei, depois de poucas, bem poucas horas de sono. Levantei devagar, evitando barulhos desnecessários, não queria incomodar o ritmo das coisas. Fred meio que pressentiu e nem fez seu alarido de sempre. O dia já estava claro. Armei a rede amarela da varanda e me pus a olhar a grama crescer. Na rua somente o barulho de sempre, FRED, solenemente deitado ao meu lado, pitty procurando algum inseto na grama do jardim.
Como não poderia deixar de ser o celular estava na mão e me pus a passear os dedos pela tela, rodando as imagens e textos do Facebook. Em uma delas, dentre tantas, que falam de políticas, as piadas e generalidades, uma me chamou atenção. Nela uma amiga informava do falecimento de uma amiga sua. Curioso que sou, visitei a página da amiga de minha amiga.
Era mulher, era jovem, era ao que pude perceber feliz. Tinha filhos, irmãos, amigos que lhe queriam bem e que ao que parece ficaram do seu lado no instante final.
A amiga de minha amiga, pelo que percebi, perdeu a guerra contra o câncer, mas não foi uma guerra fácil, pra nenhuma das partes. Infelizmente ela foi vencida.
Desci um pouco em sua linha do tempo, e constatei, triste, que foi há quatro dias seu aniversário, não pude saber de quantos anos, mas supus que não eram muitos.
Em uma das postagens, ela, debilitada, mas demonstrando uma força que me surpreendeu, agradecia e dizia ter certeza de muitos outros anos que ainda viriam e que viveria. No seu texto singelo de agradecimento por mais um ano de vida, havia tanta certeza que a vida era boa e justa e que por ser assim, lhe daria vitória, que cheguei a desacreditar que ela pudesse ter morrido, porque ainda era tão forte a certeza dela, embora já fosse frio seu corpo cansado.
Me abalou a certeza de que a vida é agora, essa verdade insistente que negamos a todo custo. Nos enganamos, mentimos, fingimos não saber, mas amanhã é longe demais. Tudo que temos é o agora.
A amiga de minha amiga, talvez soubesse, mas ela queria acreditar de tal forma que a vida é melhor e maior, que sua certeza parecia irrefreável. Na verdade irrefreável, percebi, embora queira negar, somente o curso da vida, tão breve.
Os barulhos do dia amanhecendo foram aos poucos diminuindo e a vida seguindo seu curso, engolindo o tempo, pelo ponteiro apressado do relógio e levando com ele toda certeza, deixando apenas uma: somos instantes.
Segui minha rotina, em mim martelava uma certeza: mais um dia que começava, um dia a menos pra se viver.

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