Textos

Do amanhecer

ive uma noite péssima, aliada ao silêncio ensurdecedor cortado apenas pelo latido dos cachorros, marcando espaço, e dizendo aos demais cachorros que aquele espaço era seu, o que havia noite afora era puro silêncio, escuridão e ausência.
Confesso que ainda que incomodado pelo silêncio que me fazia ouvir o estalar dos móveis de madeira, me dizendo a todo instante que estou cercado pela solidão, ainda prefiro esse vazio de gente, que o preenchimento involuntário.
Além de tudo, havia um começo de gripe me tapando nariz e garganta, e esse eterno amargo na boca.
Acordei algumas vezes, tomei a água insípida, fria, que me descia goela abaixo tão fria quanto o momento. Naquele instante o silêncio era quebrado apenas pelo som da água derramada no copo. Todo o resto era ausência.
Depois disso mais nada. O despertador tocou e já era dia. Agradeci, a solidão da noite tem sido perversa.
Lembrei-me de mãe, ela dizia que toda doença tende a melhorar pela manhã, vai se agravando durante o dia, prevalece à noite, mas pela manhã ela abranda, como se concedesse uma nova chance ao dia que chega, uma forma de dar-lhe condições de vencer, como se fosse possível vencer a natureza, nem ela própria vence a si mesma.
Ha outro elemento da sabedoria popular que fala da melhora da morte. Seria uma melhora repentina, ainda que tênue que o doente tem antes de morrer.
Não morrerei de gripe, não desta, não hoje, ao menos espero, mas a ideia de uma melhora repentina é traiçoeira, me persegue.
Não que eu tenha medo da morte, tenho medo é de não ser. Não sendo, a gente é apena lembrança. Depois nem isso.
Não me dá medo ser passado, medo eu tenho de não ser mais nada.
O dia começou e eu, supersticioso, levantei da cama e procurei pisar o pé direito. Sabe se lá, em dias aziagos, toda sorte é válida.
A gripe está melhor, o medo do silêncio também, há vida correndo pela casa. Um sapo tenta se esconder na grama do jardim, borboletas e pardais espalham seus sons pelo ar.
O dia começou me dizendo, de novo e de novo que o novo sempre vem. Isso deveria ser alento, é medo. O que vem de novo, é como a morte, não se pode prever. E cá comigo tenho esses pensamento: só se vive bem, quando se acredita no chão que pisa.
Eu sei, o poeta me disse, amanhã será outro dia, mas na minha ânsia de beber a vida num gole só, quero a certeza do agora.
Quero a gripe curada, quero o medo do distante e quero abraçar abraçar solene e pra sempre a luz do dia que chega, iluminado caminhos, me tomando de assalto a solidão e o silêncio que são meus, mas que me pesam nos ombros e no coração.
Viver pra mim é construir agoras.

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