Textos

Doido manso

Sinto diminuir a luz a minha frente, mas ainda assim continuo de olhos fixos na tela do computador, no qual escrevo apressado. Pressinto que alguém me olha, mas ainda assim me detenho na escrita, parando periodicamente para reler o que escrevi. Sei que alguém me olha, mas que fale o que quer. Ou que a secretária saia logo e atenda a pessoa que me observa. A vida exige pressa, o trabalho a qual me dedico também.

Durante alguns segundos que aprecem uma eternidade sinto os olhos fixos em mim. E Jozi que não volta? Ergo a cabeça rapidamente, já quase baixando-o a de volta à tela do computador, apenas para me certificar de quem está ali parado e pedir-lhe que espere que a moça volte para atender e de relance vislumbro a figura. Levanto a cabeça e analiso a figura que me olha fixamente sem nada dizer. O homem alto, sisudo, nu da cintura pra cima como se diz aqui de quem anda sem camisa, os cabelos uma moita gigantesca que há muito  não ver pente, tesoura tampouco. Fosse outra circunstância, ou outra pessoa em meu lugar se assustaria, eu não! Reconheço o rosto familiar e sorrio.

– Que susto, Haroldo, num sabe falar não?

O homem continua impassível, o rosto imóvel que me olha, como quem fixa o nada. Percebo que tem algo na mão. A camisa no ombro, mais parece um trapo de fazer rodilhas, com os quais as mulheres de antigamente forravam a cabeça antes de colocarem  os pesados baldes e potes cheios d’água, que carregava do Açude do Povo para o uso doméstico. O calção que veste não passa de outro trapo. Haroldo é assim, um mulambento, um maltrapilho.

Olho novamente pra ele, o homem parece perdido, me olhando parado ali.

– Diga Haroldo, que foi? Quer o que?

Ele estende a mão, nela uma nota de R$ 5,00, por um minuto fico sem entender porque o Haroldo está me entregando dinheiro. Então percebo, o homem está me devolvendo o dinheiro que lhe dei ontem. Sorrio.

– Não precisa Haroldo, pode ficar, eu lhe dei, é seu!

Ele balança a cabeça e grunhe algo que tenho dificuldade de entender. Põe a nota, meio amassada sobre a mesa e vai saindo. Eu lhe chamo.

-Haroldo, pegue o dinheiro é seu. Ele nada diz. Sai e vai embora.

Ontem ao chegar para o expediente que dou aqui entre 11h00 e 13h00, o homem estava na calçada como de costume, cumprimentei lhe, como sempre faço e simplesmente me seguiu até minha sala que a primeira, sem entender muito o que ele diz, entendi que queria dinheiro e lhe dei. Ele simplesmente pegou e saiu. Tempo depois quando sai de volta par ao outro trabalho o vi comendo na calçada. Não me olhou, como sempre faz.

Só agora entendi que Haroldo, veio me devolver o empréstimo que lhe fiz ontem, sem saber que era um empréstimo, confesso que me deliciei com essa situação. Haroldo é umas figuras mais insólitas que jamais conheci.

Desde menino, quando aqui cheguei e me pus a desvendar os mistérios de cada canto do que pra mim era uma cidade grande que me deparei com a figura do mendigo, cabeludo, sempre sem camisa andando pelas calçadas, horas com um velho rádio, hora com jornais velhos, lendo atentamente  ou ouvindo, conforme seja, notícias de esporte e de times de futebol. Quando eu era um menino, nutri medo dele, que horror! Mas de tanto vê-lo tão calmo, silencioso, quase soturno, em acostumei a figura daquele homem sujo, maltrapilho e cabeludo, que nunca, que ninguém saiba cortou os cabelos. Desde então nutro por ele um estranho fascínio. Onde mora Haroldo? Quem são seus familiares? Porque vive nas ruas, dorme mesmo em alguns bancos ou pelas calçadas? E porque sempre tão calado?

Há quem diga que ele tem família. Eu mesmo nunca atestei, limito-me a passar por ele, cumprimentar lhe com o corriqueiro bom dia, e algumas vezes dá-lhe algum trocado, que ele usa para comprar comida, nunca para beber.

Houve vez em que  uma amiga, observando, em noite fria, o homem aninhar-se numa calçada para dormir, sem camisa, usando como travesseiro apenas o velho mulambo que faz, às vezes, de camisa e que ele traz sempre ao ombro, dirigiu-se a ele, tendo em mãos um lençol. E se travou o seguinte diálogo:

– Boa noite, Haroldo!

– ghumr

– Tá com frio?

– ngrnssumm

– Olhe trouxe um lençol pra você, pegue, não durma com frio não. Vai fazer mais frio de madrugada.

– Quero não!

– Porque Haroldo, vai fazer frio, rapaz, tu vai ficar com frio!

– Eu não preciso não, lá em casa tem lençol.

– mas tu não tá em casa, rapaz, precisa de lençol.

-Quero não! Pode levar.

Qual não foi surpresa ao ouvir isso de pessoa de minha confiança. E que tapa com luva de pelica Haroldo, deu  em mim e em um monte de gente que se julga infeliz por não ter o que deseja. Haroldo simplesmente não precisava, não precisava de um lençol em uma noite de frio, e nós aqui querendo acumular coisas, achando que são necessárias.

Deste dia em diante, Haroldo passou de mistério à poesia. Ele não é só um louco, misterioso que povoou a minha infância e que eu nunca fui capaz de compreender. Ser o Aroldo é ter um estilo de vida, em que pra se viver precisa apenas está vivo, respirar, e suprir uma o outra necessidade, as mais necessárias.

A figura do Haroldo, me remete aos loucos dos romances de José Lins e de Jorge Amado, às quixotescas figuras de romances e de crônicas de Rachel de Queiroz e em minha mente fértil, o Haroldo da Pedra Branca se mistura com o Bafo de Bode da idílica Santana do Agreste, na obra Tiêta, com o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, de Fogo Morto, meio louco e meio poeta, Haroldo vai se misturando a outras tantos tipos urbanos que permearam minha história, desde a louca Maria da Mala, que corria a Vila do Realejo, carregando uma mala vazia e praguejando contra Deus e o mundo, ao louco Juvenal das ruas do bagaço, que teve triste fim ao ser morto a pedradas, em crime, que na minha meninice não fui capaz de entender, até a Chica, um tipo meio bêbada e meio louca, mas amiga que andava pelas calçadas sempre em busca de quem lhe pagasse uma dose.

Haroldo, vai entrar pra galeria das grandes figuras, aquelas que jamais serão esquecidas pelo imaginário popular, de que lhe conheceu, mas que nunca terá algum reconhecimento porque é e sempre será apenas mais um doido manso.

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