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Visita à saudade

Hoje eu visitei a saudade. Inverti a ordem natural das coisas. Quebrei o clichê tão comum nas história de amor mal sucedidas, quando o comum é que a saudade é que nos visite, hoje eu fui inevitavelmente a seu encontro.
O cheiro de terra molhada, os pneus do carro deslizando na lama ainda fresca da chuva que acabara de cair. O percurso era o mesmo que eu costumeiramente faço todos os sábados depois do almoço quando saio do trabalho cumprindo uma rotina que há meses adotei como parte da minha semana. Domar do meu lado reclamava por ter aceitado dirigir, mal acostumado que está a dirigir em estrada carroçavel ainda mais em período chuvoso. Eu tudo que via, eram as poças d’água, os filetes de água simulando riachos que ainda corriam como resquícios da chuva recente, o
mato que há poucos dias era uma emaranhado de galhos secos e cinzentos hoje de repente se mostravam verdes como num passe de mágica. O sertão é mágico, bastam as primeiras chuvas e a vida se renova, toda beleza se recria, a vida renasce e era nisso que eu pensava quando avistei a saudade de longe.
Era o cemitério. O mesmo cemitério, pelo qual passo semana a semana, há meses. Mas hoje o vi de forma diferente. Não! Não era medo. Nunca tive medo de cemitérios, pelo contrário. Aqui temos dois cemitérios, um antigo cheio de túmulos ilustres, e também de covas rasas pelas quais desde sempre nutri imenso interesse e onde ás vezes passava horas admirando as fotos e nomes escritos nas lápides tentando saber quem foram aquelas pessoas. Naquele tempo, eu menino ainda, para quem a morte era só coisa de se ouvir dizer, ninguém morria de verdade, pelo menos não na minha família, nos meus amigos, quando muito morria um velhinho da vizinhança, mas então eu já tinha aprendido que os velhos morrem, era natural.
Só depois, de forma inesperada e dolorosa, mais dolorosa que inesperada, já que devemos ter, todos nós a certeza da morte, uma vez que morremos todos um pouco por dia, eu descobri, que se morre, e que se morre jovem e que dói demais quando alguém que a gente ama vai embora sem se despedir, sobretudo quando essa pessoa leva com ela todos os sonhos que ela não viveu.
O carro patinava na lama e eu não consegui pensar em mais nada. Nem o verde das folhas, nem na água da chuva, nem na vida que se renova no sertão com as poucas chuvas que caem, porque havia ali na minha frente do outro lado do muro uma vida pra sempre sepultadas com sonhos que nunca mais se renovariam, sonhos que eram meus também. Pedi a Domar que parasse o carro. E de súbito como quem lesse os meus pensamentos ele só parou e sem me perguntar nada como é de sua natureza desceu e me seguiu.
Eu visitei a saudade. Faz mais de dois anos que ela repousa ali. Com todos os seus sonhos,seus planos e uma vida pausada aos vinte dois anos de idade. Eu não tive a oportunidade de dizer adeus a minha saudade, nem de dizer ao meu amigo que o amava, como hoje ele não pode ver a beleza da vida se renovando, ele adoraria ver. Ele amaria ver a água correndo nos riachos, as árvores pintando tudo de verde, a serra esverdeada, o céu nublado, relâmpagos e trovões cortando o céu, mas ele hoje é lembrança e saudade e não pode ver. Ele não está aqui.
Mas eu estou. Eu fiquei, ao contrário do menino que imaginava que a morte era abstrata demais pra ser real, a pessoal grande que me tornei aprendeu perdendo que a morte existe e chega às vezes sem avisar, contudo por enquanto eu posso viver. E tou vivendo. Morrendo um pouco por dia, porque este é o destino de quem nasce, mas ainda vivo o bastante pra sentir saudade e sonhar.

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