Textos

Sandália da Humildade

Hoje amanheceu chovendo. Enquanto escrevo na semi-escuridão do quarto do hotel , a água cai em pingos grossos no telhado. Eu sempre gostei da chuva, especialmente do barulho dela caindo e escorrendo, é como se o mundo inteiro tomasse banho.
O curioso é que hoje faz pouco mais de um ano que frequento essa cidade semanalmente, essa é a primeira chuva que assisto. No último um ano, tenho passado dois dias por semana aqui e nunca, nunquinha tive a sorte de acordar com o barulho da chuva, de dormir embalado pelo ritmo da água no telhado ou mesmo de ficar vendo as nuvens pesadas no céu ameaçando desabar. Era sempre sol e calor.
Lembro-me da primeira vez que estive aqui. Foi uma passagem rápida, cheguei em um dia voltei no outro e carregava comigo a certeza que dificilmente voltaria. Vim fazer a seleção de mestrado. Era um domingo ensolarado, tão quente, quanto mais tarde descobriria são todos os dias aqui. Cheguei. Fiz a prova e fui embora. Depois da prova só um parte de mim acreditava que não voltaria, porque embora relutasse em assumir havia uma parte tomada de esperança, e a cidade quente e abafada, eu já deixei pra trás achando até amena.
Que surpresa eu não tive ao analisar cada etapa da seleção. Gabarito. Fase um. Fase dois. Até que num fim de tarde tão quente quanto os que vivi aqui a resposta que eu havia acalentado como esperança durante tanto tempo: aprovado. Não me contive! Às vezes ainda hoje eu me belisco pra acreditar que eu tive mesmo tanta sorte. Sorte ?
Hoje é meu último dia aqui. Depois de um ano inteiro em que descobri mais sobre mim, sobre o mundo e sobre quem eu pretendo ser do que os últimos vinte anos puderam me ensinar, hoje, de coração partido, eu vou deixar aqui uma das melhores fases da minha vida.
Me lembro da segunda vez que estive aqui. Ainda não acreditando, eu tinha que fazer a matrícula, separei todos os documentos, arrumei tudo numa pasta, pus roupa na mala e Elyarah a tiracolo de companhia, vim então. Eu era todo um misto de alegria e medo, certeza e insegurança.
Quando cheguei neste mesmo quarto de hotel, na manhã da segunda-feira, me dei conta que havia esquecido os sapatos. Sim, havia calças, blusas, documentos, perfume, mas além das havaianas que eu calçava, eu não dispunha de nenhum outro calçado.
Tentei pensar numa solução, como assim ? Ir pra universidade fazer a matrícula do mestrado calçando um chinelo de dedos ? Não tinha solução. Pra não perder mais tempo, vesti uma calça, escolha aleatória, já que nada ficaria bem com meus chinelos. E lá fui eu, serelepe, tudo, menos confiante, vestido de muita alegria e calçando um chinelo qualquer.
Na universidade não fazia a menor ideia de onde ficasse o bloco do mestrado, não conhecia ninguém, o que hoje me parece absurdo, já que conheço até os gatos por nome, Jurema que o diga. Pergunta daqui, se informa dali, descobri o bloco lá adiante.
De mochila a tiracolo, com meu look nada harmonioso, vejo então aquela loira parada:
– Matrícula pro Mestrado é aqui?
-Sim! Nessa porta!
Era Thalita, mais tarde seríamos colegas. E ela riria desse dia, comentando meu nariz empinado na hora da pergunta. Nunca lhe disse, mas naquele dia, por ironia ou escolha do destino, ele havia me feito calçar as sandálias da humildade. Nada de sapatos. Nenhuma ostentação.
Naquele dia aprendi minha primeira lição: humildade. E desde então descobri tantas coisas, sobretudo que o conhecimento até nos faz melhores, mas primeiro ele desconstrói a gente, para que o processo aconteça tem que ser humilde . Eu tive sorte: comecei a jornada calçando as sandália da humildade. Foi a vida, hoje entendo, me dizendo:
-Nem se empolga, tu vais aprender mas antes, terá que reconhecer como és pequeno.
Como sou grato.
Hoje saio menor do que entrei, não porque tenha diminuído, mas porque me dei conta do meu tamanho diante da imensidão do mundo.
Daqui levo muitas saudades, um bocado de coisa aprendida, amigos que nunca mais deixo pra trás, mestres que me serviram e serão eternas inspirações e a certeza que muito pouco eu sei, ou nada sei.

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