Textos

Inimiga Íntima

Nunca nos demos bem, essa é a verdade. Sempre foi uma convivência forçada. A princípio aceitei porque tinha medo dela. Nada havia que eu pudesse fazer contra sua presença.
Fui fraco! Uma noite cheguei em casa cansado, Fred e Pitty me esperavam no portão com o habitual alarido, acariciei-lhes a cabeça, sentei no sofá e repeti o ritual diário: tirei os sapatos, sacudi longe uma meia, depois a outra, sempre faço isso e fico imaginando onde elas vão cair. Acredite, Elas caem nos lugares mais insólitos e depois eu fico sem entender porque tem sempre um pé de meia solitário na gaveta. Não faz muito tempo, mexendo na casa e afastando os móveis achei tantos pares de meias diferentes que nem lembrava de tê-los tidos. Acabaram formando um bonito grupo de meia sem pares, um pouco parecidas comigo, que receio ser também uma meia perdida na vida.
O fato é que o ritual noturno me agrada, de pés cansados, retiro os sapatos, jogo as meias ao léu e espero que um dia as encontre, via de regra nunca mais as vejo. Neste dia não foi diferente, acalmado o alarido dos cães, sentei-me no sofá, descalcei os sapatos, lancei foras as meias, no que uma me caiu sobre o balcão da cozinha. Mesmo um bagunceiro inveterado como eu não gostaria de ver uma meia no balcão ao tomar o café da manhã, não é? Forçosamente levantei-me para o precoce resgate da meia. Foi então que me dei conta de sua presença.
Era uma presença silenciosa. Nada estava fora do lugar. Tudo parecia na mais perfeita ordem, exceto pela sua presença quase imponente. Minha primeira reação foi de susto, espanto. Que ousadia! Nunca havia lhe visto antes. E ela estava ali muito à vontade, como se sempre tivesse pertencido aquele lugar. Fui covarde. Nada indaguei. Poderia ter tomado uma atitude, agido feito homem, mas não! Simplesmente a ignorei e confesso foi por medo!
Fui dormir, mas antes tomei o cuidado de fechar bem a porta do quarto e levar os cães junto comigo, eles também são medrosos. Pela manhã, o sol brilhava esplendoroso. Pé ante pé, sai do quarto. Fred e Pitty não se arriscaram, fui ver o que havia. Nenhum sinal dela. Suspirei aliviado! Ela havia ido embora. Os cães balançaram o rabo agradecidos.
Tudo transcorreu na mais perfeita calmaria. A rotina do dia e eis que chegando em casa à noite, já esquecido do episódio da véspera, entro em casa afobado, mal dando bola a farra dos cães, e ao me jogar no sofá, sinto a estranha presença. Era ela! Havia voltado e ali estava silenciosa. Nada fez! Apenas me olhou por um tempo que pareceu infinito. Dormi com sede esta noite! Não fui à cozinha.
Eis que noite após noite a cena se repetiu. Era chegar em casa e me deparar com a incomoda presença. Mesmo sem palavras estabelecemos um acordo de convivência, delimitamos territórios. A sala era minha. A cozinha era dela. Eu poderia dormir no quarto e já fazia isso sem trancar a porta, apenas encostava e escorava uma poltrona, porque não se deve confiar demais no inimigo. Os cães ficavam alerta e houve noite em que revezamos o sono, ora dormiam eles, ora dormia eu. Afinal sabe Deus, quando ela poderia quebrar o acordo de convivência e invadir nosso território.
Nada há que o tempo não nos imponha e eis que sua presença foi uma imposição cada vez mais aceita. Contudo, como um presente, depois de muito tempo, ontem choveu. Foi chuva boa, daquelas de deixar o tempo com cara de inverno, daquelas de quando a gente era menino e tinha medo de trovão. Até fez frio. E então Fred, Pitty e eu sentamos na varanda pra ver a chuva chover. Eu já nem me lembrava mais como era, eles também não ! Embora desconfie que eles estivessem comigo mais pelo medo de trovões que pela chuva propriamente dita. Já disse que eles são medrosos?
Pois diz que no meio da chuva, água escorrendo, pelo ralo do jardim de inverno, vejo a Dita Cuja descendo na correnteza muito serelepe! Não tive dúvidas, corri e tapei o ralo! Nunca gostei de rãs. Não seria essa que eu iria tolerar! A Cozinha é nossa novamente!

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