Textos

Memórias de pão quente

Hoje eu acordei com cheirinho de pão quente entrando em casa, dormi até mais tarde, o que causa espanto até a mim mesmo, mas o fato é que dormi. Todos os fatores contribuíram para isso, a chuva que caiu ontem à noite e deixou o ar com cara de lavado, limpo e mais puro, o silêncio característicos das cidades pequenas somado ao fato de a minha casa ser longe do centro. Como não dormir numa manhã assim? Impossível não se render e eu humano que sou tenho minhas fraquezas sendo uma delas adorar ficar na cama em dias chuvosos, havendo dias em que nem precisa ser chuvoso para eu querer ficar na cama.

Calhou que Helena, cujo relógio biológico é alinhado ao big bem e sempre pontualíssimo, acordou como é de praxe muito cedo, e estando inquieta, cometeu o improvável ato de ir sozinha até o supermercado sem consultar a ninguém, o que me causou estranheza, haja vista que ela não consegue saber a diferença entre açúcar e sal se os encontrar próximo na mesma prateleira, me ligando a cada minuto pra saber se comprar biscoito ou bolacha, recebendo sempre como resposta de minha parte o qualquer uma, mais porque não vejo a mínima diferença, do que porque preferia um dos dois, que de fato são a mesma coisa,

Acontece então, que ela saindo sob os pingos gelados da chuva matutina, conseguiu a proeza de sozinha comprar pães quentíssimos, que ao chegarem em casa, encheram-na com sua presença olfativa. Acordei de imediato e ao sentir o cheiro gostoso do pão impregnando tudo, entendi o que meus  alunos querem dizer quando dizem “tá dominado, tá tudo dominado”. Fiquei ali na cama sentindo o cheirinho de pão quente, brigando comigo mesmo para levantar da cama, uma parte de mim querendo o pão anunciado pelo cheiro, outra, a mais forte até então, querendo o calor acolhedor das cobertas. Mas este era um dia de surpresas e contrariando todas as expectativas Helena fez café. Pasmem. O cheiro de café inundou tudo e era aquele café que gosto, dava para sentir pelo cheiro, era o meu café, forte e doce. Foi um golpe baixíssimo. Pão quente e café, numa manhã chuvosa, difícil resistir,  mas mergulhei mais fundo das cobertas e ali fiquei.

Ali estando quando mal esperava, quem foi inundada foi minha cabeça, de lembranças de um tempo que eu nem imaginava que pudesse ser lembrado. Me deu uma saudade grande da Padaria do João Pedro. Quem é novo e não sabe, mas esta padaria fica no Beco do Açude e faz o melhor pão de toda a cidade. Anda tudo tão estranho e tão mudado que é preciso esclarecer alguns pontos,  Beco do Açude é a parte da cidade que se chega saindo da Praça do Violão e descendo pelo Beco da Zenaide, mas não se enganem, o senso comum convencionou de chamar toda essa área de Beco do Açude, no entanto aquela rua larga a  que se chega quando se sai do Beco da Zenaide é a Rua da Gruta, que descendo direito se bifurcará em duas outras ruas, essas sim as que compõem o beco do açude.

Mas a bem da verdade é que a Padaria do João Pedro ficava e ainda fica na rua da Gruta, vizinho a capela que dá lhe dá nome. E foi desta padaria que ano após anos eu comi o pão cujo o cheiro despertou essas lembranças há tanto esquecida. Quem não se lembra da Padaria, cuja calçada era a mais movimentada do bairro, ai por volta das seis da manhã, todo mundo querendo garantir seu pão quentinho, que eram armazenados em caçuás, por trás de um balcão, enquanto a filha do dono despachava ainda sonolenta e este sentado, na verdade esparramado  na calçada da igrejinha, assistia a movimentação.

Quem acordasse mais tarde, corria o risco de ficar sem o pão quente e saboroso que desde as quatro ou cinco horas da manhã era anunciado pelo cheiro que subia rua acima, junto com a fumaça que exalava da chaminé do forno à lenha. Quem tinha ouvido mais apurado, podia ouvir madrugada afora os padeiros nas suas conversas, risadas e até cantarolando suas músicas, e aquilo aos meus olhos revestia a padaria de uma áurea meio encantada. Eu que sempre fui fã da noite, ficava imaginando como era bom trabalhar noite a dentro, vendo a madrugada chegar e o dia se anunciar no nascente, aquela balburdia toda era motivo de curiosidade para mim, que morando do outro lado da rua, ficava noite afora me balançando na rede armada na sala, ficava horas a fio na escuridão apenas ouvindo o barulho do vento nas folhas ralas das algarobas e as rasgas mortalhas com seu canto de agouro saindo de seus ninhos no telhado da grutinha, tudo isso cadenciado pelo tic-tac do relógio e pela voz desafinado dos padeiros no outro lado da rua.

Continuei debaixo das cobertas, o cheiro do pão era bom, o do café melhor ainda, mas eu preferi as lembranças, caso levantasse daria de cara com um pão que não era o do João Pedro, com um café que não era o da minha mãe, e o pior era o de Helena, que sabe Deus como ela conseguiu fazer. Melhor ficar ali, deitado, sentindo cheiro e lembrando de um tempo que não volta, porque tudo que o tempo leva é para sempre, mas sentindo o aconchego de quem viveu um tempo bom, em que havia manhãs chuvosas de domingo, regado a café e pão quentinho. Um pão com sabor de infância e lembranças embrulhadas nas páginas amareladas da memória. Tinha razão a poeta: “o que a memória ama, fica eterno.”

One thought on “Memórias de pão quente

  1. Lindo. Lembrei do meu tempo de criança que ao chegar do sítio com minha mãe, descíamos pela rua da Zenaide, Beco da Gruta… e a imagem de mim, pequenina, na realidade magricela, segurando a mão da minha mãe, sempre apressada para resolver tudo antes do carro de horário sair!

    Amei a crônica de hoje!
    Parabéns

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *