Textos

Sons do passado

Música é um negócio interessante, música e cheiro ficam impregnados em nós e são marcas indeléveis. Se apagam nunca mais. Eu era pequeno ainda, entre menino e adolescente e dia de domingo lá em casa era dia de meu pai ouvir música brega. Corrijo, meu pai não, era dia de todos nós, de casa e da vizinhança ouvirmos música brega, sim! Sou de um tempo em que não havia leis proibitivas de limite de som e que o gosto musical dos vizinhos geralmente nos era imposto, a gosto ou a contragosto.

Entre os meus nove e dezessete anos morei no Beco do Açude, ora na José da Silva, uma ruela que nasce desmembrando-se da Coronel Brasil e que vai dá na Parede do Açude do Povo, ora na própria Coronel Brasil, que dizendo assim por nome poucos saberão qual é, pois conhecem tão somente por Rua da Gruta. Pois é, sou cria do Beco do Açude.

Hoje acordei, assim meio sei lá, e nesses dias, sempre prefiro acordar com música. Acordo, abro os olhos, fico ali dormitando embaixo dos cobertores até me certificar que pra começar o dia eu preciso de música, pego o aparelho de celular e ponho uma música que chama outra e depois outra. E assim começo minha rotina, tomo banho ouvindo música, me visto ao som de outras e saio com música no som do carro, às vezes, cantando junto, desafinado, mas cantando.

Hoje foi exatamente assim, acordei, escolhi uma música, entre as milhares da minha playlist e pus no modo aleatório, enquanto embaixo do chuveiro planejava meu dia, comecei a rir, me dando conta de como é eclético o meu gosto, estava tocando Lily Allen: “Somewhere Only We Know” e de repente ouvi Vanusa cantando “manhãs de Setembro”. Foi impossível não me remeter aos domingos de manhã no Beco do Açude em que éramos acordados antes pela vitrola de meu pai, ora tocando os discos de Evaldo Gouveia, Barros de Alencar, Carlos Alexandre, depois por um som ainda mais potente, quando do advento do CD, em que já ouvíamos coletâneas inteiras de brega, então não poderia ter mistura maior, se ouvia desde Jovem Guarda, até Eliane a rainha do forró.

Quantos domingos não fui despertado ao som de: “fuscaaaão preeeeeeeeto” ou “feiticeeeeeeeeira”, lembro-me que à época eu odiava, tinha sobretudo vergonha, achava que as pessoas se incomodavam tanto quanto eu. Que nada, a maioria fazia o mesmo, e muitos dividiam o gosto em comum com ele. Meu pai  trabalhava a semana inteira e só ouvia a música no domingo, mas era um costume comum nas donas de casa da época arrumar a casa com o som em toda altura, e como era desesperador as sete horas da manhã, ser acordado com os sons  da vizinhança em peso tocando “Saaaaannnnnnndro Lúuuuuuuuuucio”.

Foi impossível não rir, hoje de manhã, lembrando do ecletismo do meu pai, dos meus vizinhos, de como fui criado em meio a um vasto repertório popular. Ouvia-se de tudo nos rádios do beco do açude, de brega a forró da moda. E o melhor era que toda casa, por mais simples que fosse, tinha um rádio potente. Ficasse nas calçadas e era comum se ouvir um verdadeiro mosaico de sons. Lembro-me da febre que foi a música Saga de um Vaqueiro da Banda Mastruz com Leite e como éramos obrigados a ouvir essa música sendo repetida na única rádio da cidade a época, três, quatro, cinco, vezes numa única manhã.

Pior, muito pior foi quando surgiu Morango do Nordeste com Laiton dos Teclados inundando minhas manhãs de domingo ou não com o som estridente de “ Aaaaaahhhhhh é o amoooooooooor é o amooooorrrrrrrr”, outra febre popular, as pessoas não se cansavam de pedir e a rádio não cansavam de tocar. Acredito que o Bar do Vitor nunca vendeu tanto CD quanto nesta época.

Ri muito lembrando daquela época maravilhosa, daqueles sons estridentes e daquela música, que parece que não, mas me despertaram um lirismo que eu não saberia ter se não tivesse sido introduzido no mundo dos sentimentos pelos que amam o amor popular. Outro dia houve um show do Amado Batista aqui perto, fomos, todo mundo rindo, era engraçado que nós estivéssemos em um show do Amado Batista, definitivamente não é alguém que ouçamos, ele não está na minha playlist, não tenho Cd’s dele, chegando no show, ele entra, começa a tocar e eis que eu viajo no tempo: conheço cada uma das músicas tocada. E canto a plenos pulmões, de Princesa, passando por Menininha, até Seresteiro das Noites, eu sabia de todas.

 Música é um negócio engraçado, você ouve, ela se entranha. Eu cresci ouvindo Amado Batista enquanto corria pelas ruas de pedras irregulares da José da silva, enquanto sentava pra bater papo nas calçadas da Coronel Brasil, enquanto olhava a vida passar nos batentes da grutinha. As músicas que eu ouvi, também me fizeram quem sou. Música a gente ouve e fica na alma, fica eterno, fica no coração. Em mim vivem todas música que ouvi e que aprendi a amar, porque elas simbolizam tudo de simples e belo que a vida me deu.

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