Textos

Velha Roupa colorida

E já se vão anos que eu ouvi pela primeira vez aquela voz rouca e estranha no rádio: “ há tempo, muito tempo que eu estou longe de casa …” Era Belchior e eu não sabia, soube tempos depois, muito depois quem era a tal figura dona da voz e dos versos que me ganharam o coração de jovem Rapaz latino-americano, na verdade um menino ainda.
Eu não sei bem, a memória me anda falha, talvez prenúncio de uma caduquice precoce, mas eu ainda andava, menino magrelo a vender molhos de cheiro verde de porta em porta, quando fui tocado pela poesia desse poeta ímpar, que me ganhou estranha, um tanto pela voz, um tanto pelos versos tortos que feito faca, às vezes cortava a carne ainda nova, daquele menino bobo que só sonhava e estranhava alguém berrar em um refrão que, foi por medo de avião que segurou pela primeira vez na mão de alguém.
Hoje, eu homem feito, embora não pronto, cheguei em casa, depois de um dia empoeirado, de uma viagem à Tróia, não a idílica, a da guerra, mas o distante distrito que acolhe uma extensão de matrícula da escola onde trabalho, mirei no espelho a minha cara cansada e ri ao me lembrar de uns versos do bardo cearense que diziam: “… Que o passado é uma roupa, que não me serve mais”.
Impossível conter a leva de pensamentos que se seguiu à esta cena, e toda vez que me vem um verso, uma nota das canções de Belchior, me vejo menino, caminhando pelas ruas do Beco do Açude, em tardes ensolaradas a caminho da Francisco Vieira , as calças tão curtas quanto eram minhas perspectivas e o caminho, às vezes tão longo quanto meus sonhos de menino amarelo, que dormia pouco porque sonhava muito e acordava cedo pra vender verdura antes da Tereza do Tião, a minha maior concorrente.
Meu poeta, que só depois descobri ser meu, como meus são seus versos, chegou aos meus ouvidos, pelo som da casa de Geraldo Fotógrafo, onde se ouvia música alto, a despeito do gosto dos vizinhos, como era costume na rua e no nosso tempo, graças a Deus, alguém um dia, quis tocar uma música de Belchior e num fim de tarde, sentado talvez na calçada da capelinha da gruta, eu tenha sentido saudade de casa, sem ainda tê-lá deixado, porque uma estranha e potente voz, dizia que há tempo, muito tempo que estava longe de casa. Graças a esse dia, aprendi mais tarde que não se volta ao passado, mas se pode olhar pra ele como aquela velha roupa colorida que não nos serve mais.

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